O desenvolvimento industrial em Campinas e as relações sociais de trabalho

A cidade de Campinas, bem como toda a região do interior paulista, alcançou posição de destaque no cenário econômico nacional desde o período imperial, no século XIX, impulsionado pelo forte desenvolvimento do cultivo de cana-de-açúcar e, sobretudo, do café, voltado para a exportação e também para o mercado interno. A exploração da mão-de-obra escrava e a concentração latifundiária, características marcantes da estrutura econômica do Brasil colonial, possibilitaram o enriquecimento de uma classe senhorial dominante que passou a investir no desenvolvimento de atividades industriais no final do século XIX.  

O foco do desenvolvimento industrial em Campinas naquele momento era a atividade primário-exportadora, ou seja, a exportação de produtos agrícolas, sendo que a indústria apresentava um papel subordinado à atividade principal. O setor industrial era responsável pela produção de bens de consumo, como têxteis, alimentos e bens de capital, equipamentos, peças de reposição e máquinas agrícolas responsáveis por aparelhar o setor primário-exportador [1].

Inicialmente a maior parte das máquinas e equipamentos utilizadas pelo setor primário-exportador, no último quarto do século XIX, eram de origem importada, sendo a atividade local, em sua maior parte, responsável pela reposição das peças simples desses equipamentos. Essa atividade foi realizada por fundições de origens diversas, oficinas mecânicas ou pelas próprias empresas responsáveis pela comercialização dos equipamentos[2].

Alguns fatores que contribuíram para a industrialização em Campinas foram a facilidade de transporte propiciada pela malha ferroviária já instalada, a introdução da energia elétrica (a partir de 1901), a boa infraestrutura, o baixo custo de vida, os salários inferiores aos pagos na capital, os incentivos de isenção de impostos (com a lei de 1908) e as facilidades na aquisição de terrenos para a instalação das indústrias[3].

Em meados da década de 1880, quatro estabelecimentos de fundições de máquinas e aparelhos em Campinas já empregavam por volta de 500 operários. Os proprietários desses estabelecimentos eram de origem estrangeira, sendo dois alemães (Johann Ludwig Benjamin Faber e Fernando Arens), um escocês (Guilherme Mac Hardy) e um norte-americano (Guilherme Van Vleck Lidgerwood)[4].

A aproximação entre estas empresas de fundição e o desenvolvimento industrial da cidade de Campinas e cidades próximas como Limeira, Americana, Sorocaba e Santa Bárbara d’Oeste foi determinante. Além da fabricação de máquinas a serem utilizadas nas atividades agrícolas, estas empresas forneciam peças para a infraestrutura e urbanização das cidades, atuando no processo de construção da malha ferroviária da Companhia Paulista de Estradas de Ferro[5].

Dentre as indústrias que primeiro se instalaram em Campinas destaca-se a Companhia Mac Hardy [Item 1], fundada em 1875, voltada para a fabricação de máquinas de beneficiamento de café, implementos agrícolas e ferramentas para a lavoura [Item 2]. Seu fundador, o mecânico escocês Guilherme Mac Hardy [Item 3] chegou em Campinas em 1872 para trabalhar na firma Milford & Lidgerwood, importadora de máquinas agrícolas. Na década de 1880 a Companhia Mac Hardy ampliou suas instalações e inaugurou novas e grandes oficinas de fundição situadas na Avenida Andrade Neves, nas quais trabalhavam cerca de 170 operários. Podemos observar o registro de atividade da Companhia por meio dos livros de ponto onde constam os nomes dos trabalhadores [Item 4]. 

Em 1891, a empresa foi transformada em sociedade anônima, primeira do gênero na região, com a denominação de Companhia Mac Hardy Manufatureira & Importadora. A partir deste momento, vários proprietários ligados à política de São Paulo e à agricultura cafeeira figuram como dirigentes e acionistas da empresa. [Item 5] A Companhia passa a ampliar sua área de atuação e sua receita, principalmente em atividades relacionadas com a fabricação, construção e importação de máquinas [Item 6 e Item 7], materiais para ferrovia, para abastecimento de água e para iluminação, empreitadas, concessões e contratos, fornecimentos para construções civis, navais e hidráulicas, além de adquirir, vender e fundar fábricas.

A primeira diretoria foi composta pelo fazendeiro Barão de Ataliba Nogueira, pelo industrial e fundador Guilherme Mac Hardy e pelo advogado Gabriel Dias da Silva, todos residentes em Campinas. O conselho fiscal foi composto por Roberto Paton, Pedro Miller e Antonio Celestino de Toledo Soares [Item 8, Item 9 e Item 10]. Em 1893, Guilherme Mac Hardy voltou para a Escócia, deixando o cargo de presidente ao Barão de Ataliba Nogueira, mas mesmo de longe participou da orientação dos rumos da empresa até seu falecimento em 1914. 

Na mesma época da fundação da Companhia Mac Hardy, ocorreu a fundação da Companhia Cortidora Campineira, tornada popularmente conhecida como Curtume Campinense, que iniciou seus trabalhos em 1882, no antigo bairro Piçarrão (atual Vila Industrial), tendo como seu fundador o fazendeiro Francisco Domingos Sampaio. A atividade industrial consistia na produção de couros destinados ao solado de calçados [Item 11], solas engraxadas destinadas às correias de máquinas e óleos de mocotó. Com a prosperidade do empreendimento, a indústria transformou-se numa sociedade. [Item 12] 

O desenvolvimento destas empresas ao longo das primeiras décadas do século XX acompanha o avanço do processo de urbanização e industrialização da cidade, fato que pode ser constatado pela presença delas encontrados em anúncios e publicações em jornais e revistas do período revelando, assim, forte investimento em propaganda. 

É interessante observar que entre os acionistas da Companhia Mac Hardy Manufatureira e Importadora, em 1893, aparecem vários empresários, imigrantes, fazendeiros de café e políticos importantes da cidade de Campinas e do Estado de São Paulo. Além dos dirigentes da empresa já citados anteriormente, fazem parte da lista de acionistas: Antônio Proost Rodovalho, João Proost Rodovalho, John Barker, Orozimbo Maia, Manuel Albuquerque Lins, Francisco Góes Pacheco, entre outros. [Item 13] 

Para além do proeminente desenvolvimento industrial da cidade já observado ao final do século XIX e impulsionado durante o início do século XX, torna-se importante acompanhar como se desenvolveu concomitantemente o processo de proletarização da sociedade em Campinas e região durante esse período e a maneira como estes trabalhadores passaram a se organizar no sentido de construir uma rede de colaboração recíproca na busca por boas condições de vida e de trabalho em um momento de crise econômica agravado pelas epidemias que levaram à morte milhares de pessoas na cidade. 

Vale ressaltar que estas fábricas foram muito mais do que estabelecimentos de produção de bens de consumo e transformação de matéria-prima, pois além da rígida maquinaria e da cansativa rotina de trabalho, estes espaços abrigavam saberes, experiências de vida e o compartilhamento de práticas sociais e culturais vivenciadas cotidianamente pelos trabalhadores. [Item 14] A cultura associativa tornou-se um campo fértil para práticas e rituais, o que pode ser conferido junto a diferentes organizações mutualistas, recreativas, reivindicatórias e sindicais existentes à época na cidade[6]

Observa-se nesse momento o crescente enriquecimento de uma classe de empreendedores do setor industrial, em sua maioria oriundos ou associados ao setor primário-exportador agrícola de tempos anteriores e, em paralelo, a formação de uma camada popular de trabalhadores assalariados, brasileiros e imigrantes. Neste momento se formam duas classes sociais inseridas em um mesmo processo de industrialização. 

Nesse sentido, a documentação nos possibilita observar como se desenvolvia a organização em ambos os lados, tanto do lado administrativo quando analisamos as atas de reuniões e assembleias do corpo diretivo das empresas além do registro de compra, venda e transferência de ações aos acionistas, bem como nas atas de discussões realizadas em assembleias de trabalhadores associados à Sociedade Humanitária Operária de Campinas. [Item 15

Esta sociedade foi criada em 1898, numa época em que a previdência social era quase inexistente, não havendo aposentadoria, pensão para familiares em caso de morte, férias ou descanso semanal remunerado, indenizações por doenças ou acidentes de trabalho. Período em que havia também frequentes ameaças de demissão dos operários e diminuição temporária dos trabalhos. Dela faziam parte operários de diversas categorias profissionais como pintores, serradores, carpinteiros, ajustadores, feitores de carvoeiros, marceneiros, fundidores e ferroviários, entre tantos outros profissionais. [Item 16]

Os operários, para associarem-se, pagavam uma taxa de ingresso e cediam também o equivalente ao salário de um dia de trabalho, podendo contar com auxílios em caso de doenças, morte (auxílio-funeral) e apoio financeiro às viúvas. A partir de 1920 passou a ter caráter social e cultural. A impossibilidade de reprodução autônoma gerava pressões estruturais sobre a vida dos trabalhadores que buscavam por meio de variadas táticas, resolver seus problemas no lar, nos bairros e nas fábricas. [Item 17 e Item 18

Nas primeiras décadas do século XX, o parque industrial campineiro era diversificado e a maior parte dos estabelecimentos empregava um pequeno número de trabalhadores. As únicas exceções foram as oficinas da Companhia Paulista e Mogiana, estradas de ferro que ligavam a região com o restante do Estado. Na segunda metade da década de 1920, foi possível identificar a presença de alguns fatores, tais como a instalação de indústrias têxteis, a migração interna e a formação de bairros urbanos industriais e proletários que contribuíram para modificar a organização econômica e espacial da cidade.

A Sociedade Humanitária não se restringia a organizar os trabalhadores em torno de questões ligadas às relações de trabalho, mas também consistia em um agrupamento com fins sociais, culturais e recreativos por promover bailes, saraus, festividades e reuniões, quando  contratavam músicos para aulas de música, de dança; convidavam oradores para discorrer sobre a associação ou temas relevantes em datas comemorativas; ofereciam jogos, além de encenarem peças teatrais ensaiadas entre os próprios associados, chegando até mesmo a construir biblioteca[7].

Se observa a possibilidade de uma vivência coletiva pauta da em ideais democráticos visíveis nas assembléias gerais que defendiam o escrutínio secreto e o uso dos estatutos para legitimar as ações das diretorias e associados. Pode-se concluir que, um dos objetivos procurados pelos associados era a valorização social do trabalhador como cidadão, de modo que os benefícios iam além dos auxílios concretos, significando espaços para a afirmação de identidades e a preservação de memórias. 

Embora a exploração pudesse gerar grandes dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores, elas não impediram o convívio próximo entre italianos, negros, portugueses, espanhóis ou filhos de imigrantes nos bairros, botequins e bailes, pois os locais de trabalho concentravam um pequeno número de operários8.

Notas

1. MARSON, Michel Deliberali. Origens dos empresários da indústria de máquinas e equipamentos em São Paulo, 1870-1900. Nova econ. vol.22 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec.2012.  http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-63512012000300003 

2. Idem.

3. ALVITE, Laci de Carvalho. A agroindústria em Campinas, um estudo de caso. o Cortume Cantúsio. Prefeitura Municipal de Campinas. p. 6. https://www.iau.usp.br/sspa/arquivos/pdfs/papers/02515.pdf 

4. CAMILLO, E. E. R. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1887), Campinas: Mercado de Letras, Centro de Memória Unicamp, 1998. p. 44-46

5. LAGO, L. A. C. ; Almeida, F. L. de; Lima, B. M. F. A indústria brasileira de bens de capital: Origens, situação recente e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, 1979. p. 16. 

6. NOMELINI, Paula Christina Bin. Associações Operárias Mutualistas e Recreativas em Campinas 1906-1931.   ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005. p. 84. 

7. _________. Um estudo sobre associações operárias mutualistas e recreativas em Campinas (1906-1930). História Social, (14/15), p. 86-94. 

Referências

ALVITE, Laci de Carvalho. A agroindústria em Campinas, um estudo de caso: o Cortume Cantúsio. Prefeitura Municipal de Campinas. Disponível em: https://www.iau.usp.br/sspa/arquivos/pdfs/papers/02515.pdf

CAMILLO, E. E. R. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1887), Campinas: Mercado de Letras, Centro de Memória Unicamp, 1998.

LAGO, L. A. C. ; Almeida, F. L. de; Lima, B. M. F. A indústria brasileira de bens de capital: Origens, situação recente e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, 1979.

MARSON, Michel Deliberali. Origens dos empresários da indústria de máquinas e equipamentos em São Paulo, 1870-1900. Nova economia. vol.22 nº3. Belo Horizonte: Set./Dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-63512012000300003

NOMELINI, Paula Christina Bin. Um estudo sobre associações operárias mutualistas e recreativas em Campinas (1906-1930). História Social, (14/15).

_____________________________. Associações Operárias Mutualistas e Recreativas em Campinas 1906-1931. ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.

Documentos

Item 1 - BR UNICAMP CMU CMH.00013 - Studio Eurides. Desenho da máquina de moagem de grãos da Cia Mac Hardy. Campinas, SP. 1942. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 2 - BR UNICAMP CMU CMH.00013 - Caldeira com fornalha a lenha da Cia. Mac Hardy. Campinas, SP. 1937. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 3 - Guilherme Mac Hardy. Livro pessoal de registros de estoque. Campinas. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória - Unicamp.

Item 4 - Livro de Ponto p. 16-20. Campinas.  Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 5 - Livro de acionistas. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória - Unicamp.

Item 6 - BR UNICAMP CMU CMH.00008 - Serra vertical com estrutura de ferro e aço da Cia. Mac Hardy. Campinas, SP. 1945. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 7 - BR UNICAMP CMU CMH.00004 - Demonstração de arado da Indústria Tema Terra. Campinas, SP. 1945. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 8 - Livro de atas do Conselho Fiscal p. 43-45. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória - Unicamp.

Item 9 - BR UNICAMP CMU CCC.00047 - Cilindragem de sola. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Companhia Cortidora Campineira - Centro de Memória-Unicamp.

Item 10 - BR UNICAMP CMU CCC.00038 - Rebaixação. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Companhia Cortidora Campineira - Centro de Memória-Unicamp.

Item 11 - BR UNICAMP CMU CCC.00045 - Jacaré - setor de amaciamento. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Companhia Cortidora Campineira - Centro de Memória-Unicamp.

Item 12 - Livro de atas p. 1-2. Conjunto Companhia Cortidora de Campinas - Centro de Memória - Unicamp.

Item 13 - Livro de transferência de ações p. 93-101. Companhia Cortidora de Campinas. Centro de Memória - Unicamp.

Item 14 - BR UNICAMP CMU CMH.00001 - Grupo de operários da Cia. Mac Hardy. Campinas, SP. 1898. Conjunto Companhia Mac Hardy - Centro de Memória-Unicamp.

Item 15 - SHO-1. Livro de atas de assembleias p. 1-3. Conjunto Sociedade Humanitária Operária de Campinas. Centro de Memória - Unicamp.

Item 16 - SHO-15. Livro de matrículas dos membros p. 20-23. Conjunto Sociedade Humanitária Operária de Campinas. Centro de Memória - Unicamp.

Item 17 -  BR UNICAMP CMU SHO.00001 - Membros da Sociedade Humanitária Operária. Campinas, SP. Conjunto Sociedade Humanitária Operária - Centro de Memória-Unicamp.

Item 18 BR UNICAMP CMU SHO.00002 -  Membros da Sociedade Humanitária. Campinas, SP. Conjunto Sociedade Humanitária Operária - Centro de Memória-Unicamp.

Cilindragem de sola..png Cilindragem de sola. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Companhia Cortidora Campineira - Centro de Memória-Unicamp.