Um olhar sobre as transformações urbanas de Campinas

A forma urbana da cidade tem o poder de exprimir o contexto no qual está inserida, revelando os caminhos nos quais pessoas e produtos circulam, as áreas de habitação, comércio ou locais de sociabilidades que são transformados durante o tempo em que, conjuntamente, a cidade também é transformada. Nesse sentido, a Campinas do século XX, enquanto cenário de transformações sociais e econômicas com reflexos na sua urbanidade, pode ser um expressivo objeto de estudo.

Uma maneira potencial para analisar a forma e paisagem de uma cidade no passado é o uso de fotografias como fontes, possibilitando, assim, enxergar através do registro do olhar daqueles que circulavam nela. Dentre os conjuntos documentais, dos mais diversos gêneros que compõem o acervo do Centro de Memória – Unicamp (CMU), há quatro que, por suas particularidades, registraram as mudanças urbanas de Campinas, focando nos novos prédios da cidade ou nos trabalhadores das obras, desde as construções até as demolições. São estes: José Gomes Guarnieri (JGS), Geraldo Sesso Junior (GSJ), Arthur Nazareno Pereira Villagelin (ANPV) e Aristides Pedro da Silva (APS), mais conhecido como V8.

No início do século XX, a produção cafeeira marcava maior importância econômica em Campinas e a forma da cidade, por sua vez, refletia tal condição com muitas áreas rurais e um centro urbano irregular [Item 1], com avenidas [Item 2] e ruas curtas [Item 3] para o crescente movimento e ausência de vias conectadas a outras áreas da cidade. A partir da década de 1920 há um aumento significativo na população de Campinas e, junto a isso, uma expansão territorial da cidade e concentração no centro com a presença de diversos cortiços, caracterizando um problema de habitação e saúde pública.

A crise cafeeira brasileira iniciada na década de 1920 atingiu Campinas e proporcionou a abertura para que empresários investissem na consolidação do setor industrial, período no qual diversas fábricas foram instaladas, modificando a estrutura social a partir da transformação do trabalhador rural em urbano. O uso comercial do centro foi intensificado e levou ao aumento da circulação de pessoas e produtos na área. Tais fatores provocaram a intensificação de um processo de industrialização e urbanização de Campinas já em curso.

No âmbito político, despertaram discussões acerca da organização urbana da cidade e da intenção de alterar sua imagem para que esta acompanhasse seu desenvolvimento econômico. Para os políticos e a elite da época, a visão da cidade das andorinhas não deveria ser exclusivamente sobre o café, mas sim de uma cidade múltipla, moderna e em ascensão.

A partir destas articulações, em 1934, definiu-se a necessidade de um projeto para planejar o futuro urbano de Campinas, ocorrendo assim, a criação de uma Comissão de Urbanismo e a contratação do engenheiro e arquiteto Francisco Prestes Maia com a função de estudar a situação da cidade e propor soluções. O Plano de Melhoramentos Urbanos foi entregue com proposições para transformações urbanas do centro e dos bairros de Campinas em 1938. A década seguinte, marcada pela Segunda Guerra Mundial e crises econômicas, levou a uma estagnação do projeto e o Plano retornou em 1951, revisado e com alguns acréscimos para o início de sua realização.

Entre as diversas proposições do Plano de Melhoramentos Urbanos, consta o alargamento de ruas e avenidas como as ruas Irmã Serafina [Item 4], General Osório [Item 5], Conceição e outras, e as avenidas Francisco Glicério [Item 6], Moraes Salles [Item 7], Campos Salles [Item 8], Senador Saraiva [Item 9] e outras para receber o maior fluxo na região central, preparando-a para o aumento de circulação de bondes e, futuramente, de ônibus. As obras de alargamento das vias tiveram início, em sua maioria, no ano de 1956 e junto a elas, iniciou-se o processo de demolição de edifícios da cidade.

A demolição [Item 10] da Igreja da Nossa Senhora do Rosário [Item 11], em razão do alargamento da Avenida Francisco Glicério, no ano de 1956, causou grande comoção na população pois detinha uma função referencial para a população campineira. No espaço livre provido após sua demolição, houve a instalação de uma praça no espaço a se colocar como uma extensão do Largo do Rosário [Item 12]. Nota-se, neste caso, a destruição de um edifício com uso religioso e cultural para a construção de um espaço com novos usos, de encontros sociais e mobilidade e como, dessa maneira, a alteração da forma urbana pode afetar a relação da comunidade local com a cidade.

No fim da década de 1940, a Avenida Francisco Glicério [Item 13] sofreu alterações com outras demolições, para fim de construções de novos prédios [Item 14]. Entre eles, destaca-se os edifícios do Palácio da Justiça [Item 15], da Caixa Econômica Estadual [Item 16], dos Correios e Telégrafos [Item 17] e o Edifício Cury [Item 18], também conhecido como Hotel Terminus. Todos estes em estilo arquitetônico moderno, com aspectos geométricos e maior altura do que os prédios antigos e adjacentes. Dessa forma, estes prédios assinalam tanto o início da verticalização de Campinas como também a proposta ideológica do Plano de Melhoramentos Urbanos, a modernização da cidade a partir do aspecto estético. 

A construção de uma ligação entre a Avenida João Jorge e o centro de Campinas, local onde situava-se um antigo pontilhão, fazia parte das propostas do Plano e promoveu a rápida construção [Item 19] do Viaduto Cury em um ano e sua inauguração no início da década de 1960. O Viaduto [Item 20] significou não apenas uma ligação entre as áreas de expansão territorial da cidade e seu centro, como também abriu caminho para o investimento no setor automobilístico e para o aumento de linhas de ônibus da época, com a presença e uso cada vez mais restrito dos bondes elétricos. À vista disso, é possível entender que a transformação urbana da cidade, no que diz respeito à questão da mobilidade social, provocou alteração na circulação de seus habitantes, afetando o cotidiano dos mesmos e a maneira como vivenciam o espaço social. Por outro lado, fazia parte do Viaduto desde sua inauguração, o Lago dos Cisnes [Item 21], um parque arborizado que propiciava aos seus usuários desfrutar de uma paisagem agradável em meio aos prédios em progressão no centro da cidade [Item 22]. Além do lago e das árvores, o parque possuía bancos, brinquedos para crianças e formava uma área de lazer e encontro, um espaço com função social.

O centro de Campinas foi o mais contemplado pelas propostas do Plano de Melhoramentos Urbanos, pois os estudos concentraram-se nesta área. Ainda assim, foram estabelecidos projetos e definições de construções para outras áreas da cidade, a maioria com funções habitacionais, no sentido de oferecer soluções para resolver problemas dos altos custos imobiliários e a presença de cortiços que de imediato foram totalmente retirados da área central da cidade.

Atualmente, ainda é possível visualizar a presença, ausência ou mudanças de tais obras, edificações, parques e praças na cidade. Caminhar no centro é perceber os efeitos e mudanças das propostas do Plano nas ruas e avenidas, na circulação do cotidiano urbano. Estes registros fotográficos oferecem uma visão para o passado, nos propiciando uma perspectiva de compreensão da Campinas de outrora.

Referências
CARPINTERO, A.C. Momento de ruptura: as transformações no centro de Campinas na década dos cinquenta. Campinas: Área de Publicações/ CMU/UNICAMP, 1996.
DEZAN, Waldir Vilalva. A implantação de uma modernidade: o processo de verticalização da área central de Campinas. 2007. 190 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, Campinas, SP.
HADLER, Maria Silvia Duarte. Cidade, memórias e sensibilidades. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 23, n. 1, p. 81-94, 2015
RODRIGUES, Fabíola. O plano “Prestes Maia” e a ideologia do planejamento urbano em Campinas: o poder e os limites das ideias de um urbanista. URBANA: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, v. 4, n. 1, p. 125-151, 2012.

Documentos
Item 1 - GSJ 00327 - Enfa. Vista aérea da cidade de Campinas. Campinas, SP. 1938. Conjunto Geraldo Sesso Junior - Centro de Memória Unicamp.
Item 2 - GSJ 00254 - Rua Francisco Glicério. Campinas, SP. 1920. Conjunto Geraldo Sesso Junior - Centro de Memória Unicamp.
Item 3 - APS HC 1.00031 -Rua Conceição. Campinas, SP. 1928. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 4 - JGG 00014 - José Gomes Guarnieri.  Alargamento da Rua Irmã Serafina. Campinas, SP. Década de 1950. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 5 - APS HC 1.00201 - Aristides Pedro da Silva. Rua General Osório nº 1631. Campinas, SP. Década de 1970. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 6 - JGG 00001 - José Gomes Guarnieri.  Avenida Francisco Glicério. Campinas, SP. 1956. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 7 - GSJ 00476 - Não identificado. Entrada da Rua Moraes Salles. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Geraldo Sesso Junior - Centro de Memória Unicamp.
Item 8 - APS HC 1.00946 - Aristides Pedro da Silva. Av. Dr. Campos Sales. Campinas, SP. Década de 1960. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.

Item 9 - JGG 00023 - José Gomes Guarnieri.  Alargamento da Avenida Senador Saraiva. Campinas, SP. Entre 1957 e 1962. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 10 - JGG 00003 - José Gomes Guarnieri.  Demolição da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Campinas, SP. 1956. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 11 - APS HC 1.00779 - Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Campinas, SP. Entre 1913 e 1920. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 12 - JGG 00033 - José Gomes Guarnieri. Avenida Francisco Glicério. Campinas, SP. Entre 1957 e 1962. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 13 - APS HC 1.00693 - Vista Parcial. Campinas, SP. Década de 1940. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 14 - APS HC 1.00630 - Construção do Fórum - Palácio da Justiça. Campinas, SP. Entre 1939 e 1943. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 15 - APS HC 1.00631 - Construção do Fórum - Palácio da Justiça. Campinas, SP. Entre 1939 e 1943. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 16 - APS HC 1.00278 - Caixa Econômica Estadual. Campinas, SP. Década de 1940. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 17 - JGG 00015 - José Gomes Guarnieri.  Empresa de Correios e Telégrafos. Campinas, SP. Década de 1950. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 18 - APS HC 1.00868 - Edifício Cury. Campinas, SP. 1942. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 19 - JGG 000117 - José Gomes Guarnieri. [Construção do Viaduto Miguel Vicente Cury. Campinas, SP. 1962. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória Unicamp.
Item 20 - APS HC 1.00741 -  Vista aérea da Cidade. Campinas, SP. 1970. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória Unicamp.
Item 21 - ANPV 00040 - Lago dos Cisnes. Campinas, SP. Entre 1974 e 1984. Conjunto Arthur Nazareno Pereira Villagelin - Centro de Memória Unicamp.
Item 22 - ANPV 00041 - Lago dos Cisnes. Campinas, SP. Entre 1974 e 1984. Conjunto Arthur Nazareno Pereira Villagelin - Centro de Memória Unicamp.

Capas para o site - Por Dentro do Tema_Transf Urbanas.png Vista aérea da cidade de Campinas. Campinas, SP. 1938. Conjunto Geraldo Sesso Junior - Centro de Memória Unicamp.