No mês de novembro do ano de 1928 a cidade de Campinas foi tomada por um grande rebuliço popular em torno de um curioso caso no Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado, os episódios de estigmatização [1] e das visões de Jesus Cristo e da Virgem Maria por parte da irmã Amália de Jesus Flagelado.
Irmã Amália de Jesus Flagelado, batizada Amália Aguirre, nasceu em 22 de julho de 1901 na cidade de Ríos na Espanha e imigrou para o Brasil junto de sua mãe e irmãs no ano de 1919, entrando pelo porto de Salvador na Bahia e mudando-se posteriormente para a cidade de Campinas.
No ano de 1927 junto de um grupo de mais oito freiras e do então bispo de Campinas, D. Francisco de Campos Barreto [Item 1], irmã Amália funda o Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado. Foi no ano seguinte da inauguração do Instituto que os curiosos casos de estigmatização tomam conta do cenário nacional.
Os episódios de transe ocorridos com Amália iniciaram em 1928 com quadros de febre alta e a aparição das chagas de Cristo pelo seu corpo, conjuntamente das aparições e conversas com Jesus Cristo relatadas por Dom Barreto. Nos anos seguintes, a partir de 1930, iniciaram-se ciclos de aparições marianas [2] enquanto Amália realizava suas orações diárias no Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado, na qual a Virgem Maria transmitiu para a freira que ela deveria cunhar uma medalha de Nossa Senhora das Lágrimas a fim de evitar o triunfo de Satanás no mundo.
A narrativa desse curioso fenômeno foi, em primeira instância, provida por parte dos órgãos eclesiásticos e pelo próprio Dom Barreto, atuando como um canal de comunicação entre Amália e o público geral. As informações desse cunho que possibilita compreender quais os objetivos e as imagens criadas a partir dos fenômenos ocorridos com Amália, os estigmas nas mãos e cabeça que jorravam sangue vivo durante os transes nos quais a freira conversava com Jesus e transmitia seus ensinamentos possuía uma clara significação para impressionar os fiéis e impulsionar a fé cristã [Item 2].
Noticiado por diversos jornais, o caso da “missionária estigmatizada” [Item 3], como ficou conhecido, vai muito além da narrativa fornecida pelas próprias fontes religiosas e pelas palavras de Dom Barreto. Nos momentos iniciais, a estigmatização de Amália aparece como mais um caso noticiado pela história da Igreja Católica, como tem sido feito desde o século XIV com os primeiros indícios de estigmas no corpo de São Francisco de Assis. É interessante notar que ao mesmo tempo em que os misteriosos episódios se desenrolam em Campinas, os jornais de todo o mundo eram inundados com notícias sobre Theresa Neuamman, uma freira alemã que apresentava sinais de estigmatização semelhantes aos de Amália.
Entretanto, todo esse contexto narrativo é apenas a superfície de um embate muito mais profundo que ocorreu na cidade de Campinas. O início do século XX foi marcado por um contexto de intolerância religiosa no município, principalmente durante o período de permanência de Dom Barreto como bispo.
A figura do bispo não era bem vista no meio eclesiástico paulista, Dom Barreto levava uma vida luxuosa no palácio episcopal de Campinas [Item 4], vestia-se com roupas de seda dos pés à cabeça e exibia seu título de conde, adquirido diretamente de Roma. Uma das principais questões que afligiu o bispado de Dom Barreto foi um afastamento da doutrina cristã pela prioridade que o bispo concedia aos adereços supérfluos em torno de sua imagem [3].
Por outro lado, a jogada de Dom Barreto foi reforçar o cristianismo romano por meio do ataque à outros cultos que ganhavam espaço no horizonte religioso de Campinas, entre eles o protestantismo e o espiritismo. Um exemplo claro desses ataques foi documentado pelo Doutor Sousa Ribeiro, um médico adepto do espiritismo, em seu livro “O Caso da Estigmatizada de Campinas” [4] quando descreve um episódio [5] no qual Dom Barreto realiza um discurso clamando que os católicos acabassem com um comício público realizado pelos protestantes em 1922. O mais surpreendente é que o discurso rendeu um confronto entre católicos e protestantes no Largo das Andorinhas [Item 5], no qual foi necessário o uso de força policial para conter os agressores.
Frente a todo esse cenário ficou claro o posicionamento de Barreto em meio à convivência religiosa e a liberdade de culto. Foi necessário nesse mesmo ano de 1922 que os protestantes procurassem a justiça para reforçar sua liberdade de culto já garantida por lei. A defesa ao culto protestante veio por parte do juiz da segunda vara de Campinas, Arthur Cesar Witacker, que em 24 de abril de 1922 publica uma liminar [6] garantindo a liberdade de culto em nome do pastor Frederico Martins.
Dentro de todo esse contexto de disputa religiosa, como se encaixa o caso de Amália? A parte de toda significação religiosa que esse episódio adquiriu, as leituras em torno da figura de Amália foram das mais diversas, representando um cenário de disputas entre ciência e religião documentado pela imprensa e por intelectuais desse período.
É possível resgatar esse embate por meio dos jornais e obras publicadas nos anos subsequentes ao dos acontecimentos. O interessante nas publicações da imprensa nacional é o caráter plural das notícias, trazendo posições contrárias dentro das próprias religiões que buscavam, cada uma, uma explicação lógica dentro de seu próprio credo (ver Item 3).
Entretanto, observamos pelos noticiários que o verdadeiro embate estava no caráter sobrenatural dos estigmas de Amália contestado pelos racionalistas, em uma busca constante de explicar os fenômenos a partir da ciência e da medicina. Diversos médicos e religiosos foram consultados pela imprensa a fim de emitirem suas opiniões sobre o assunto, procurando demonstrar a partir de sua própria área quais as explicações possíveis para os fenômenos ocorridos com Amália.
Os discursos por parte da ciência e da medicina explicavam os supostos estigmas e suores de sangue por meio de doenças, muitas dessas psicológicas nas quais o próprio corpo em um transe psicótico reproduzia os sintomas imaginados pela mente. Esse discurso revela um grande apreço por valores religiosos, como podemos observar na ação do espírito que molda a matéria a partir de uma noção de superioridade da alma em relação ao corpo.
É importante ressaltar que a postura de Dom Barreto frente a todo esse frenesi não era de se alegrar com visitas por parte da imprensa tanto no palácio episcopal como no Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado, vetando qualquer contato de Amália com o exterior. A atitude defensiva de Barreto levantou diversos questionamentos sobre a veracidade dos acontecimentos, levando até mesmo o bispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva, a se recusar a comentar o caso.
Apesar de não negarem por completo os fenômenos, a maioria dos líderes espíritas e protestantes se posicionavam com cautela, para não negar os fenômenos de estigmatização como também para não confirmarem a presença desses no corpo de Amália, uma vez que não era possível constatá-los com veracidade.
O maior ataque ao caso de Amália veio por parte do já mencionado Dr. Sousa Ribeiro. Médico e adepto ao espiritismo, Ribeiro escreve uma obra inteira [Item 6] acusando Dom Barreto de forjar todo o caso de Amália para poder saciar sua sede de poder. Para o médico, era clara a intenção do bispo em angariar fiéis para o seu credo em um momento de disputas religiosas na cidade de Campinas, valendo-se até mesmo de artifícios que burlavam as leis para atingir seus objetivos.
A opinião do Dr. Sousa Ribeiro acabou por provocar um debate intenso no meio médico, com a contestação vinda principalmente por parte do Dr. Arthur de Vasconcelos, que em 1929 publica a obra “Res Non Verba” [7] [Item 7], que se vale do discurso médico, aliado a uma ferrenha defesa da fé cristã para provar que o caso de Amália era, de fato, um milagre , criminalizando o discurso espírita por negar os preceitos cristãos por meio da descredibilidade atribuída aos fenômenos de Amália.
Os estigmas foram mostrados ao público no dia 25 de novembro de 1928 a um seleto grupo durante uma missa na capela do Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado, entre o público que assistiu a essa missa estava o Dr. Collares Moreira, que em depoimento ao jornal Diário Nacional destacou que os católicos não compreendiam a ação entre o psicológico e o próprio sistema nervoso, concluindo que essa era de fato a patologia de Amália.
Após os meses finais de 1928 que direcionou os holofotes para a cidade de Campinas, o caso de Amália foi lentamente caindo no esquecimento dos noticiários. Sabe-se que Amália continuou a vivenciar episódios sobrenaturais nos anos posteriores à 1928, com as aparições de Jesus e da Virgem Maria durante suas orações na capela do Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado, entretanto esses casos ficaram confinados à fé de Amália, sem receber qualquer tipo de cobertura midiática. É interessante pensar, por fim, que todo o contexto em que o caso da “estigmatizada de Campinas” se insere é extremamente específico, e que provavelmente fora de um cenário polarizado religiosamente, não teríamos o surgimento de uma figura tão controversa como foi a Irmã Amália.
De forma conclusiva, esse episódio nos proporciona possibilidades de se interpretar um documento histórico a partir de vertentes diferentes, sem necessariamente podermos chegar a uma conclusão específica. Notamos, portanto, que por meio dessas diversas vertentes interpretativas alcançamos o cerne do ofício de um historiador, acessar as fontes do passado com o objetivo de interpretá-las e levantar hipóteses sobre seu contexto, sua narrativa e sua história, prezando sempre a ética de não agir como um historiador-juiz que faz a vez de julgar os personagens históricos no lugar de compreendê-los como sujeitos dentro de uma narrativa histórica.
Notas
1 - Aquele ou aquela que traz no corpo estigmas representativos das chagas de Cristo.
2 - Fenômeno no qual se acredita que a Virgem Maria apareça para uma ou mais pessoas transmitindo lições de fé.
3 - RIBEIRO, Sousa. O Caso da Estigmatizada de Campinas. Casa Editora: O Clarim, São Paulo, 1929. p. VII
4 - RIBEIRO, Sousa. O Caso da Estigmatizada de Campinas. Casa Editora: O Clarim, São Paulo, 1929.
5 - Idem. p. X.
6 - Idem. p. VIII
7 - VASCONCELOS, Arthur. Res Non Verba - A Estygatizmada de Campinas. São Paulo: Imprimatur, 1929.
Referências
RIBEIRO, Sousa. O Caso da Estigmatizada de Campinas. Casa Editora: O Clarim, São Paulo, 1929.
VASCONCELOS, Arthur. Res Non Verba - A Estygmatizada de Campinas. São Paulo: Imprimatur, 1929.
LIMA, Mário. A Estigmatizada de Campinas e o preconceito racionalista. Belo Horizonte: Inprensa Official, 1929.
Documentos
Item 1 - JFT 8. 00143 - Retrato do Conde Dom Francisco de Campos Barreto. Campinas, SP. Entre 1920 e 1940. Conjunto João Falchi Trinca - Centro de Memória-Unicamp.
Item 2 - A SANTA de Campinas. 20 nov. 1928. Conjunto Jolumá Brito - Centro de Memória-Unicamp.
Item 3 - CAMPINAS e o sensacional milagre de Soror Amália. Diário Nacional. São Paulo, SP. 18 nov 1928. Conjunto Jolumá Brito - Centro de Memória-Unicamp.
Item 4 - BR UNICAMP CMU APS HC 11 .00818 - Palácio Episcopal. Campinas, SP. Década de 1920. Conjunto Aristides Pedro da Silva - Centro de Memória-Unicamp.
Item 5 -BR UNICAMP CMU JGG 00078 - José Gomes Guarnieri. Largo das Andorinhas. Campinas, SP. Entre 1957 e 1962. Conjunto José Gomes Guarnieri - Centro de Memória-Unicamp.
Item 6 - RIBEIRO, Sousa. O Caso da Estigmatizada de Campinas. Casa Editora: O Clarim, São Paulo, 1929. p. VII
Item 7 - VASCONCELOS, Arthur. Res Non Verba - A Estygmatizada de Campinas. São Paulo: Imprimatur, 1929.
