A arte moderna em Campinas (1950-1970)

Durante a segunda metade do século XX, a cidade de Campinas foi cenário de grande agitação artística, manifestada de diversas formas, através da inovação dos artistas, mudanças de perspectiva do público das artes e expansão do mercado artístico. O Centro de Memória-Unicamp (CMU), possui em seu acervo conjuntos documentais que tornam possível acompanhar essa movimentação. Entre eles estão os conjuntos Maria Helena Motta Paes, Mário Bueno, Thomaz Perina, Clube de Arte Moderna de Campinas e Curso de Extensão Cultural “Marina Homem de Mello”. A fim de acompanhar essa movimentação a título de preâmbulo, será apresentado um breve histórico do cenário artístico internacional e nacional, em especial do eixo Rio-São Paulo, seguido do contexto da cidade de Campinas, o Centro de Ciências, Letras e Artes e sua presença ao longo do século e os grupos campineiros relacionados à vanguarda, nas décadas de 1950 a 1970.

No início do século XX, os artistas da Europa e Estados Unidos passaram a buscar novas formas de expressão em sua arte, rompendo com paradigmas academicistas, utilizando novos materiais, temáticas e técnicas para o desenvolvimento de seus projetos [1]. Movimentos como o cubismo, expressionismo e surrealismo se posicionam como vanguardas, questionando e inovando o fazer artístico. A produção artística no Brasil, no século XX, pode ser dividida em dois momentos [2], um de 1922 até 1950 e outro de 1950 em diante. O primeiro período refere-se à geração envolvida com a Semana de Arte Moderna de 1922 e a problemática nacionalista e de identidade nacional, expressa também através das artes. O segundo apresenta uma mudança de perspectiva dos artistas, que trocam o eixo de seus trabalhos do social e nacional para o metafísico e onírico [3]. Essa abordagem é conveniente para o presente estudo, pois a arte campineira está ligada em diversos aspectos ao eixo Rio-São Paulo. Apesar disso, é necessário estar atento para não adotar este referencial como homogêneo para todo o território nacional, dando atenção às especificidades regionais e locais das chamadas periferias, questão essa que atinge não apenas as artes, mas também o plano econômico e social, como Maria de Fátima Morethy Couto aborda em diversos trabalhos [4]e também Paulo Sérgio Barreto [5].

O cenário artístico na cidade de Campinas ao longo do século XX foi dinâmico, com o surgimento de inúmeros grupos, galerias e artistas, muitos deles construindo carreira e importância para além dos limites municipais. O público campineiro esteve relacionado à uma elite econômica, com objetivo de manter a tradição artística com referências na Europa e E.U.A., educando os jovens de suas famílias nas produções artísticas acadêmicas. A formação do Centro de Ciências, Letras e Artes - CCLA, em 1901, é um exemplo da finalidade desse grupo. O CCLA, que existe até hoje, esteve sempre presente e atuante nas questões culturais e científicas campineiras, responsável, em seu início, por atender às demandas artísticas e científicas do público, uma vez que o município não se encarregava das mesmas. Manteve uma caminhada buscando a intersecção das tendências nacionais e internacionais com as especificidades locais.

A partir da década de 1950, alguns artistas plásticos campineiros passam a buscar distanciamento da arte acadêmica, valorizada na cidade e ponte para o reconhecimento e consolidação de seu nome [6]. Dessa forma, em 1957, um grupo formado pelos artistas Thomaz Perina, Mário Bueno, Enéas Dedecca, Geraldo Jurgensen, Raul Porto, Geraldo de Souza, Maria Helena Motta Paes, Francisco Biojone, entre outros, organizam a I Exposição de Arte Contemporânea de Campinas, no saguão do Teatro Municipal da cidade, outrora meio de expressão sólida do academicismo tradicional nas artes plásticas. Após a primeira exposição, em 1958, o grupo passa a se reunir sob o nome Grupo Vanguarda, organizando uma segunda exposição de arte contemporânea no mesmo ano [7].

O Grupo Vanguarda surge como uma união entre artistas locais que buscavam construir seus nomes se distanciando do academicismo, trazendo novas formas de fazer artístico para a cidade. Em 1958, com o auxílio do jornalista Alberto Amêndola Heinzl, publicam no periódico do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas [8] o seu manifesto [Item 1] que, entre outras coisas, anunciava um rompimento com o modo tradicional de fazer arte, indo além dos muros dos museus e galerias, acompanhando o avanço da civilização e se modificando. O grupo realizou diversas exposições coletivas [Item 2] e individuais [Item 3], participando também das bienais paulistas [9] [Item 4], atualizando suas produções em diálogo com o desenvolvimento artístico nacional e internacional. Entram em comunhão com o perfil da cidade que, desde a década de 1930 vinha assumindo caráter progressista em relação à modernização, através de modificações do espaço urbano e projetos políticos [10], influenciando também nas artes e na forma como o público da cidade se relacionava com a mesma. Além do Grupo Vanguarda, cujas atividades foram finalizadas em 1966, o Grupo Hoje [Item 5] foi uma associação de mesmo modelo, de 1961, contando com artistas que também participaram do Vanguarda, como Maria Helena Motta Paes e Francisco Biojone, a demonstrar que havia expansão e continuidade nas manifestações artísticas em Campinas na segunda metade do século XX. Os conjuntos mostram a forma como os artistas do grupo Vanguarda apresentavam, em suas obras, suas influências [Item 6] e desenvolvimento. Além disso, é possível verificar nos currículos [Item 7], em especial nos de Maria Helena Motta Paes e Mário Bueno, nos catálogos, nos convites [Item 8] para as exposições e nas correspondências [Item 9], os meios pelos quais os artistas circulavam, suas premiações [Item 10] e atuações.

A relação entre artistas, público e mercado de arte em Campinas se dava através das galerias. Algumas dessas galerias possuíam relação direta com os grupos modernistas da cidade e sua principal função era a de organizar exposições, realizar negociações comerciais [Item 11], divulgando os trabalhos e dando ânimo ao circuito artístico da cidade. Durante as atividades do Grupo Vanguarda, foram três as galerias que tiveram ligação direta [11] com o grupo e seus artistas, sendo elas a Galeria Girassol [Item 12], a Galeria Aramar e a galeria do CCLA e, além destas, inúmeras outras [Item 13] que atuavam da mesma forma.

Os envolvidos com a Galeria Girassol formaram, em 1971, o Clube de Arte Moderna de Campinas [Item 14], composto por casais da elite campineira interessados em discutir o cenário artístico e apreciar as artes. O clube foi um importante espaço para divulgação e debate, com atividades que envolviam apresentações artísticas, discussões [Item 15], sorteio de obras [Item 16] e organização de exposições [Item 17]. A formação do grupo, com perspectivas progressistas sobre as artes, insere-se nesse contexto onde a elite campineira deixa de lado a apreciação exclusiva do viés academicista das obras de arte e passa a acompanhar a dinâmica social do fazer artístico e suas relações intrínsecas com a sociedade. Além do Clube de Arte Moderna de Campinas, outra forma de ligação entre a sociedade e as produções artísticas contemporâneas foi a iniciativa do Curso de Extensão Cultural “Marina Homem de Mello” [Item 18] que, de 1971 até 1995, organizou cursos com o objetivo de debater as questões culturais do período.

Por meio dos conjuntos, já mencionados, é possível entender o desenvolvimento da produção artística e concepção de arte, como se pode ver através dos estudos [Item 19] presentes no conjunto de Maria Helena Motta Paes; com o uso de diferentes materiais [Item 20] e técnicas [Item 21] nas reflexões sobre arte e artistas [Item 22] do conjunto de Mário Bueno; as exposições nas quais o grupo Vanguarda e outros artistas estavam envolvidos, repercussões na sociedade, através de periódicos presentes em todos os conjuntos mencionados. Além disso, é possível saber sobre o público que acessava inicialmente essa arte e a forma como era feito, através das atas de assembléias [Item 23] e encontros do Clube de Arte Moderna de Campinas e sobre o início de busca por conhecimento teórico [Item 24] sobre os movimentos artísticos com o Curso de Extensão Cultural Marina Homem de Mello. Cada um desses conjuntos com suas especificidades, trabalhados em associação servem como ponte para entender as dinâmicas sociais e artísticas que envolvem o desenvolvimento das artes na cidade.

 

Notas

1. BATTISTONI FILHO, Duílio. Pequena história da arte. Campinas, SP: Papirus, 1984. 160 p., il.

2. Ibidem, p. 125.

3. Ibidem, p. 129.

4. COUTO, Maria de Fátima Morethy. Entre territórios: a arte de vanguarda em Campinas (1950-1970) e sua repercussão no cenário artístico nacional. 19º Encontro da Associação Nacional de  Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. 20 a 25 set. 2010, Cachoeira/BA. COUTO, Maria de Fátima Morethy, Pensar a arte de vanguarda em Campinas. p. 181-194.

5. BARRETO, Paulo Sérgio. O caracol e o caramujo: artistas & cia da cidade. 1994. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. p. 78

6. COUTO, Maria de Fátima Morethy, 2010, p. 616.

7. Ibidem, p. 617.

8. Ibidem, loc. cit.

9. BARRETO, Paulo Sérgio, op. cit., p. 65.

10. COUTO, Maria de Fátima Morethy. Pensar a arte de vanguarda em Campinas, p. 189.

11. BARRETO, Paulo Sérgio, op. cit., p. 83.

Referências

BARRETO, Paulo Sérgio. O caracol e o caramujo: artistas & cia da cidade. 1994. 170f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: 

http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279260. Acesso em: 29 set. 2019.

BATTISTONI FILHO, Duílio. Pequena história da arte. Campinas, SP: Papirus, 1984. 160p., il.

COUTO, Maria de Fátima Morethy. Entre territórios: a arte de vanguarda em Campinas (1950-1970) e sua repercussão no cenário artístico nacional. 19º Encontro da Associação Nacional de  Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. 20 a 25 set. 2010, Cachoeira/BA.

COUTO, Maria de Fátima Morethy. Pensar a arte de vanguarda em Campinas. p. 181-194.

 

Documentos

Item 1 - PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Grupo Vanguarda de artes plásticas de Campinas 1858-1966. Registro Histórico através de resenha jornalística e catálogos. Manifesto: grupo vanguarda de Campinas. Campinas, SP: Gráfica e Editora Cunha Mattos Ltda., 1981. p 7. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 2 - Convite de abertura de exposição. Campinas, SP. Dez. 1980. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 3 - SALÃO PORTINARI. Thomaz Perina. São Paulo, 1978. Catálogo de exposição, dez. 1978. Conjunto Thomaz Perina - Centro de Memória-Unicamp

Item 4 - A Pintura de Mário Bueno. Diário do Povo. Campinas, SP. 21 mar 1971. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 5 - Catálogo de Exposição do Grupo Hoje. Campinas, SP. Nov 1963. Conjunto Maria Helena Motta Paes - Centro de Memória-Unicamp

Item 6 - Apontamentos. Campinas, SP. Entre 1960 e 1980. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 7 - Biografia de Mário Bueno. Campinas, SP. Ago 1975. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 8 - INSTITUTO HANS STADEN DE CAMPINAS. Convite de exposição. Campinas, SP. Fev 1979. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 9 - Carta de autorização. São Paulo, SP. 21 nov 1980. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 10 - Certificado. Piracicaba, SP. 20 dez 1969. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 11 - Cartão de convite. Campinas, SP. Década de 1980. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 12 - Convite de abertura de exposição. Campinas, SP. Década de 1970. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 13 - Relação de Galerias de Campinas. Campinas, SP. Década de 1970. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 14 - Estatutos do Clube de Arte Moderna de Campinas. Campinas, SP. Década de 1970. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 15 - Carta de Convite. Campinas, SP. 10 abr 1990. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 16 - Programas realizados em 1982. Campinas, SP. 1982. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 17 - MUSEU DE ARTE DE S. PAULO. Originais do Calendário Bosch 75. São Paulo, 1974. Catálogo de exposição, 9 dez 1974 a 9 jan 1975. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 18 - Noticiário sobre o Curso de Atualização. Campinas, SP. 19 ago 1968 - 6 set 1968. Conjunto Curso de Extensão Cultural “Marina Homem de Mello” - Centro de Memória-Unicamp

Item 19 - Estado. Grafite e nanquim sobre papel. Campinas, SP. 1952. Conjunto Maria Helena Motta Paes - Centro de Memória-Unicamp

Item 20 - Sem título. Nanquim e hidrocor sobre papel. Campinas, SP. Sem data. Conjunto Maria Helena Motta Paes - Centro de Memória-Unicamp

Item 21 - Sem título. Esferográfica sobre papel. Campinas, SP. Sem data. Conjunto Maria Helena Motta Paes - Centro de Memória-Unicamp

Item 22 - Tomás Perina: um testemunho. Campinas, SP. 1978. Conjunto Mário Bueno - Centro de Memória-Unicamp

Item 23 - Circular do Clube de Arte Moderna de Campinas. Campinas, SP. Nov. 1972. Conjunto Clube de Arte Moderna de Campinas - Centro de Memória-Unicamp

Item 24 - Programa de 1971. Campinas, SP. 1971. Conjunto Curso de Extensão Cultural “Marina Homem de Mello” - Centro de Memória-Unicamp

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